Julho sem plástico e A História do Plástico: há sustentabilidade possível?

Você consegue imaginar uma vida sem plástico?

Olhe à sua volta, veja quantos objetos de plástico você encontra e responda sinceramente.

O plástico está em todos os lugares e serve para praticamente tudo, está nas roupas, nos cosméticos, nas embalagens de alimentos. Mas como chegamos a isso e como as marcas têm reagido a movimentos como o Julho Sem Plástico?

Voltando no tempo ou como ficamos soterrados em plástico

O lançamento do documentário A História do Plástico , feita no Brasil pelo Instituto Alana, abre nossos olhos: como cidadãos do mundo, profissionais, empresários ou ativistas, para quem assim se considerar.

Um dos pontos altos do filme é mostrar que o problema do plástico não é ocasionado pelo maior desejo por plástico por parte dos consumidores. Na verdade, trata-se de um problema gerado pela estrutura produtiva imensa criada ao redor da indústria petroquímica que produz o plástico e que simplesmente não pode parar. É um problema de oferta e não de demanda.

Diante de um cenário em que a demanda por combustíveis fósseis tende a diminuir, diz Dewey Johnson, Vice-Presidente de marketing e pesquisa de mercado da IHS Chemical: “Nossa expectativa é de que o crescimento da demanda por combustíveis fósseis vai começar a cair, então onde podemos antecipar crescimento adicional? Um lugar é o mercado de petroquímicos. ” Ou seja, a indústria pretende crescer à base de plástico.

Esse material incrível, flexível, multiuso, passível de tingimento e moldagem é na realidade um subproduto da produção de óleo e gás e esse setor vem recebendo incentivos monstruosos ao redor do mundo. Segundo o Fundo Monetário Internacional, o volume de subsídios anuais totaliza 5,2 trilhões em todo o mundo o que representa quase o triplo do PIB do Brasil. Isso faz com que o custo de extração do petróleo e dos produtos decorrentes seja artificialmente baixo, num pacto pró indústria fóssil que está explícito, especialmente nas declarações do americano. Um episódio simbólico foi a mudança da regulamentação feita pelo governo Bush em 2005 para favorecer a exploração de petróleo no Golfo do México, que o documentário bem retrata.

Então não estamos falando de um problema de gestão de resíduos. Estamos falando provavelmente da cadeia de suprimentos mais poderosa do mundo e sua necessidade de crescer (serão U$ 194 bi investidos em mais de 325 novas plantas só nos EUA até 2025) e injetar produto em todas as demais cadeias produtivas através de embalagens, tecidos e tudo o que possa ser feito à base de plástico.

Claro, estamos falando também do uso nobre do plástico, um material hiper durável, que demora de 300 a 400 anos para se degradar, e tem inúmeras aplicações úteis na medicina e na construção civil por exemplo. Mas esse uso, infelizmente, jamais justificaria o crescimento previsto por essa indústria.

Como ficamos viciados em plástico

O documentário aborda também o assunto delicado das diversas estratégias do setor para disseminar o uso do plástico, que veio acompanhada de uma narrativa específica sobre os resíduos de seus produtos. Eles são retratados como lixo, um problema a ser resolvido por cidadãos e municípios através de uma boa gestão dos resíduos e, claro, isso se apoia na triagem pelos consumidores e na reciclagem. Foi assim que a indústria do plástico criou inúmeros programas de estímulo à reciclagem em parceria com o poder público e calçou suas estratégias de marketing no final da cadeia.

As estratégias comerciais foram agressivas e deram certo. Desde os anos 70, as peças de vidro, ferro, alumínio e papel foram substituídas progressivamente por embalagens plásticas. Em pesquisa recente, Vanúzia Gonçalves Amaral , Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia / Arqueologia da UFMG, demonstrou esta evolução. Ela fez uma verdadeira arqueologia dos resíduos em aterros sanitários e retratou os plásticos substituindo praticamente todos os outros materiais no Brasil, especialmente após os anos 80.

Hoje são mais de 80 tipos diferentes de material, com diversos níveis de reciclabilidade (muitos deles, sem reciclabilidade alguma na maior parte do mundo, como os plásticos multi-camadas que embalam sachês e de salgadinhos, o tal BOPP).

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Então não se iluda com a reciclagem

Ela não vai solucionar este imenso problema. O Brasil é hoje o quarto maior produtor de lixo plástico, segundo um estudo da World Wildlife Fund (WWF): são 11,3 toneladas por ano, das quais somente 1,28% são recicladas. ​E esses números se repetem ao redor do mundo. O mesmo estudo mostra que o volume de plástico que vaza para os oceanos todos os anos é de aproximadamente 10 milhões de toneladas, o que equivale a 23 mil aviões Boeing 747 pousando nos mares e oceanos todos os anos. Nesse ritmo, até 2030, encontraremos o equivalente a 26 mil garrafas de plástico no mar a cada km².

E isso tudo sem considerar as milhões de toneladas de plástico que os consumidores encaminham para a reciclagem, acreditando que isso vá manter o material longe de tartarugas e baleias.

Com o chamado China Ban, ocorrido em 2017 quando a China parou de receber recicláveis de todo o mundo, a situação ficou explícita. Navios europeus e americanos carregados de plástico não tinham mais onde aportar, programas de reciclagem foram paralisados e comunidades inteiras em países pobres passaram a ser soterradas em material “reciclável” recusado pela China. Esses resíduos aguardam então para serem triado por pessoas em situação de vulnerabilidade extrema. Na África, a situação é hoje dramática.

É bom lembrar que o plástico, além de poluir durante sua produção, emite gases durante a decomposição, agravando problemas de saúde nessas populações que trabalham com o material sem os equipamentos adequados de segurança. A reciclagem, em todo o mundo, é movida a pobreza.

Tem que ser assim? Não.

A reciclagem é parte essencial da solução, desde que haja mercado para os produtos que ela gera e isso, novamente, depende de investimentos da indústria na reabsorção desse material, o que só vai acontecer com regulamentações mais duras e pressão dos consumidores, seja sobre a indústria ou sobre o poder público.

No Brasil, como nós da Casa Causa sempre falamos, reciclar é um ato social, é incentivar cooperativas e catadores que dependem desse material para sobreviver.

Mas a reciclagem é também um problema industrial, tecnológico e ético. Como o documentário menciona “nós não deveríamos produzir nada que não sejamos capazes de gerenciar”. Parece óbvio? Não se você olhar o plástico que se acumula em praias e nos oceanos.

Onde entra a ética?

A esse respeito vale a pena ler o artigo do Intercept de julho de 2019, que contém, assim como o documentário mencionado, uma coletânea impressionante de informações sobre como a indústria do plástico vem se apoiando e investindo na narrativa da reciclagem e no estímulo à gestão municipal de resíduos para evitar mudanças significativas na sua cadeia produtiva e na substituição de seus insumos fósseis.

O “clássico” seminal dessa discussão é o filme “O índio que chora”, de 1971, comercial bancado pela associação Keep America Beautiful, uma coalizão anti-lixo formada por empresas de bebidas e embalagens, incluindo a PepsiCo, Coca-Cola e Phillip Morris, e produzido Ad Council . Nessa peça publicitária, um indígena americano (na verdade um ator ítalo americano fantasiado de índio) chora ao ver o lixo jogado no chão. Era só o começo da responsabilização do público pelo problema do resíduo plástico, que também está presente em muitas campanhas de reciclagem.

Hoje, as narrativas de Clean Up (mutirões de limpeza), ainda que tenham um papel gigantesco de conscientização do consumidor final, também são bastante úteis à indústria, dando a impressão de que esse tipo de ação pode ajudar de fato a solucionar o problema. A mídia então retrata grupos enormes de pessoas que, comovidas, fazem o impossível em praias, parques e ruas. Mais uma vez, é o consumidor final tentando, como retrata o documentário, retirar água da banheira com uma colher enquanto a torneira continua aberta.

E sim! Temos responsabilidade como consumidores (também, mas não principalmente).

Não sente, não chore, precisamos agir rápido para resolver o problema do plástico.

Mas primeiro, quem precisa agir?

O  Greenpeace publicou em outubro de 2019 o relatório produzido pelo movimento Break Free From Plastic (Liberte-se do plástico), onde pelo segundo ano consecutivo a gigante da indústria de refrigerantes, a Coca-Cola, fica em primeiro lugar na lista das 10 empresas que mais produzem plástico no mundo. A lista segue com Nestlé e Pepsico no segundo e terceiro lugares. ​

As demais empresas que completam as dez principais poluidores são:  Mondelz International, Unilever, Mars, P&G, Colgate-Palmolive, Phillip Morris e Perfetti Van Melle.​ A pesquisa foi realizada com a ajuda de 72 mil voluntários que removeram e catalogaram cerca de 476.435 pedaços de lixo plástico nas ruas, parques públicos e praias em 51 países.​

Então é preciso encarar de frente essas marcas que estão em praticamente todos os lares do mundo e colocar em pauta a hashtag #EPR, ou extended producer responsibility. Esse princípio prega que a indústria se ocupe em reabsorver tecnologicamente e recomprar o material que colocou no meio ambiente. Essa responsabilidade estendida é irmã da logística reversa prevista na nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010 e ainda em fase de regulamentação, porém aqui prevalece o princípio da responsabilidade compartilhada, o que dificulta ainda mais o endereçamento direto do problema à indústria.

EPR, é possível ou é mais uma utopia?

Para responder essa pergunta, fomos atrás de casos práticos e nada melhor do que dar uma olhada no que uma das gigantes do plástico, a americana Dow Química, tem feito. Segundo a assessoria da empresa, ela “está investindo globalmente em pesquisa e desenvolvimento, além de trabalhar de forma colaborativa com todos os elos da cadeia de valor para solucionar o desafio de transformação de uma economia linear para circular na indústria dos plásticos.

A empresa está trabalhando no desenvolvimento de soluções que viabilizem a produção de embalagens flexíveis monomaterial, que facilitam e ampliam a reciclabilidade em relação a opções multimateriais hoje disponíveis. Após os processos de coleta e separação, o que antes era resíduo, pode retornar como resinas recicladas pós consumo (PCR), que podem ser usadas na fabricação de novas embalagens.”

Aqui no Brasil, o projeto Reciclagem que Transforma, uma parceria dessa empresa com a Boomera e a Fundação Avina, procura melhorar o processo, a gestão e a qualidade de vida dos catadores. Ao longo de 2019, as cinco cooperativas participantes do piloto enviaram para a reciclagem 4.429 toneladas de materiais - 37% a mais que em 2018 – gerando uma renda para os cooperados 35% maior em relação ao mesmo período de 2018. Impulsionar estes processos de coleta e separação é fundamental para o retorno de resíduos como resinas recicladas pós consumo (PCR) para a cadeia produtiva.

​E o trabalho é imenso. Segundo o documentário A História do Plástico, de todo o material já produzido no mundo, metade foi introduzido nos últimos 15 anos e hoje seu destino final fica assim dividido: 32% acaba indo parar no mar, 40% vai para aterros sanitários, 14% será incinerado e somente 2% será efetivamente reciclado.

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Um alerta: a diferença entre reciclável e reciclado

Mas é preciso lembrar: na reciclagem, o plástico passa por um processo chamado downcycling, ou seja, ele perde progressivamente a qualidade, o que impede que seja usado para os mesmos produtos para os quais foi concebido. Portanto, haverá descarte do plástico, a menos que haja um avanço tecnológico brutal, e ele se degrada a níveis mínimos pela ação do calor, do vento, da água, até se tornar o microplástico que hoje é estudado na medicina como potencial causador de diversas doenças.

É nesse avanço tecnológico que aposta a Boomera, empresa brasileira dedicada a reprocessar materiais difíceis em parceria com cooperativas e com a indústria.

O sonho de todos é o mesmo: a economia circular, onde os materiais voltam para ciclos técnicos e biológicos de reaproveitamento, evitando a extração de mais recursos naturais.

Para Guilherme Brammer, fundador da Boomera, 3 pontos são fundamentais para tornar a economia circular uma realidade. Educação curricular sobre sustentabilidade “igual matemática, geografia, português. Essas crianças têm que crescer com esse conceito enraizado dentro delas e têm que acompanhar por todo período escolar – do pré ao médio. Só assim vão olhar para o futuro de forma diferente.” Você, que lê este artigo, certamente não aprendeu nada sobre economia circular na escola, aprendeu?

Outro fundamento é a visão Sistêmica. “Tudo começa na ideia, na concepção de um produto até a reciclagem, passando por toda a cadeia. Se não for assim, o projeto morre no meio do caminho, não garantindo a economia circular.” Por isso é essencial que a indústria protagonize esse processo.

Finalmente, a solução desse problema precisa acontecer com todos os envolvidos sentados à mesa. “É importante que todos tenham o conhecimento do caminho que o produto vai percorrer para assegurar a economia circular. Se todos – Investidor, Administrativo, Marketing, Engenheiro, Designers, etc, não estiverem alinhados com o conceito, ele vai se perder.”

Economia circular, como começar, como seguir?

É preciso começar em casa. Este ano, o julho sem plástico foi a data escolhida pelo Banco do Brasil para reforçar a substituição dos copos de plástico por copos duráveis em todas as suas instalações. O banco pretende ser uma instituição livre de plásticos (copos) até 2021.  Eles têm a meta de plantar 20 mil árvores, neutralizando 3.225,8 KG de carbono na natureza, zerando assim as emissões geradas nas dependências da instituição. Esse tipo de ação ajuda a cobrir o vácuo educativo que temos em relação ao tema e leva o assunto para a pauta das instituições, podendo incentivar uma visão mais crítica em relação ao plástico. Será interessante acompanhar o que o BB estará disposto a avançar em termos de critérios sustentáveis para conceder créditos a empresas, por exemplo.

Um caso onde o tema da economia circular está muito mais incorporado na cadeia produtiva é o da Timberland. A empresa está eliminando o uso de químicos impermeáveis à água que contenham PFC (fluorocarbonetos que são potentes gases de estufa). Mesmo o PVC, um dos materiais de plástico mais utilizados, já foi quase completamente abandonado. Para combater os resíduos de plástico, a Timberland também está reciclando garrafas de plástico. Em 2017, foram usadas 40 milhões de garrafas de plástico na produção de sapatos (3 milhões mais que no ano anterior). Até agora, a empresa reciclou mais de 270 milhões de garrafas. ​A indústria de calçados é uma das maiores usuárias de borracha virgem. Uma vez que a um produto da linha Timberland Tires tenha chegado ao fim de sua vida útil, ele será enviado para uma instalação de reciclagem e transformado em borracha de migalhas. Esta borracha de migalhas é transformada em borracha de folha que será novamente usada nas solas dos sapatos da marca.​

A francesa Schneider Electric, especializada em gestão de energia e automação, ganhou o Prêmio de Multinacional de Economia Circular. Empregando 142.000 pessoas em mais de 100 países, ela utiliza conteúdo reciclado e materiais recicláveis em seus produtos, prolonga a vida útil do produto por meio de locação e pagamento por uso e introduziu esquemas de retorno em sua cadeia de suprimentos. As atividades circulares representam hoje 12% de suas receitas, e economizarão 100 mil toneladas de recursos primários entre 2018 e 2020. ​

A economia circular é um conceito baseado na inteligência da natureza onde os resíduos são insumos para a produção de novos produtos​. “Na minha visão a economia circular pode ser alavancada fazendo com que mais projetos nasçam, desde sua fase de concepção, já considerando os aspectos da circularidade. Fazer isso na fase de projeto usando design thinking torna a tarefa bem mais fácil do que ter que transformar um produto ou negócio linear em circular”, diz Marcelo Ebert, fundador da marca de produtos de limpeza que trabalha, a brasileira YVY, que opera totalmente alinhada à economia circular, com embalagens permanentes, ativos naturais e logística reversa de suas cápsulas de refil, que são, além disso, altamente recicláveis.

 

Todos à mesa, como copos de vidro e pratos de louça

E que comece o grande diálogo. Muito vai ter que mudar nos próximos anos em busca de soluções para o problema do plástico. Nós da Casa Causa, acreditamos que existem maiores e menores, existe um passado obscuro no tornozelo do tema, mas acreditamos que também é atingido ou não há um momento no qual os assuntos possam ser servidos, bem à vista, expostos a todos, para quem puder ver e entender nossas inteligências em nome de soluções efetivas para o problema. Estamos aqui para ajudar quem está disposto a ver e agir. Bora causar!

Colaboraram neste artigo Luciana Annunziata e a jornalista Mônica Kezan .